Não contém glúten. Ufa!
Não contém glúten.
Ufa!Quem ainda não leu ou escutou sobre o mais novo vilão do século XXI: o
glúten? Contém glúten ou não contém glúten é um enunciado presente na maioria
das embalagens dos alimentos industrializados. Trata-se de uma proteína
encontrada em alguns cereais, como o trigo, a cevada, o centeio, o malte e a
aveia, e causa grandes danos a quem é alérgico. Pessoas com esse problema são
portadoras da doença Celíaca, mal que, em função de inflamação no intestino
delgado, compromete as vilosidades responsáveis pela absorção dos nutrientes.
Você que não tem
restrições ao glúten e é um amante de gastronomia italiana, já se imaginou
resistindo a uma pizza ou lasanha como a da “nona”? Você que adora viajar e
frequentar lugares exóticos, experienciar outras culturas a partir dos seus
sabores, já imaginou precisar perguntar a cada prato quais ingredientes foram
usados, como foi preparado, se havia algum glúten passeando por perto da
caçarola no momento em que seu camarão estava sendo preparado, ou mesmo
saltitando no avental do chef?
Comer fora de casa,
nesses casos, torna-se uma aventura nem sempre vibrante, pela superação dos
desafios, mas um suplício pelo enfrentamento de “caras e bocas” dos garçons,
gerentes, “chefs” de cozinha e clientes quando o interrogatório sobre os pratos
se inicia. Taxado muitas vezes de neurótico obsessivo, hipocondríaco ou
simplesmente chato, os portadores da doença Celíaca são vítimas de preconceito
e alvo de piadas. A dor física e psíquica gerada pela presença da alergia, se
curada pela não ingestão do glúten (único tratamento existente), é substituída
pelo sofrimento da condição do “ser diferente”, como se não bastasse a saudade
que a falta do sabor dos alimentos inflige. A saudades daquele gosto do bolo de
chocolate que a mãe preparava para o lanche junto com os amigos ou para o
piquenique no parque. O do cachorro quente, entrada principal no cardápio das
festinhas de aniversário, o da pizza de domingo, da macarronada instantânea dos
acampamentos. Na cultura judaica, em que se comemora o “Pessach” em torno das
refeições regadas a “matzá” e “kneidales”, alimentos a base de trigo, também
deixam sua marca saudosa. Ou seja: como ser judeu sem comer o “matzá”? Ou ser
cristão sem receber a hóstia?
A restrição total ao
glúten traz um grande sofrimento para algumas pessoas, principalmente para
aquelas a quem os alimentos têm um lugar de afeto e prazer primordial na vida.
Assim, os primeiros tempos de descoberta da doença exigem não somente uma
elaboração em torno da experiência nutricional e gastronômica, mas da própria
identidade e dos valores atribuídos à vida. Nas reuniões sociais é necessário
deslocar o prazer dos quitutes servidos para focá-lo no que, desde então, essas
ocasiões explicitamente propõem: boas conversas, música, dança ou outras formas
de lazer. Muitas vezes, esses propósitos são esquecidos por estarem recobertos
por um tipo de apelo emocional dos alimentos. Este é um dos modos de descobrir
o quanto se poderia, até ter se deparado com o problema com o glúten, estar se
perdendo e o que se passa a ganhar com um outro olhar sobre a vida. Ela
torna-se híbrida, mais colorida, divertida. A sociabilização adquire novos
sentidos, não se aceita mais comodamente qualquer companhia ou passeio. O tempo
e o espaço passam a trazer experiências que não podem mais ser camufladas por
uma fatia de torta ou por um copo de cerveja. O que passa a estar em jogo é o
que entra e sai pela boca em forma de palavra, de discurso − nem mesmo a pipoca
do cinema, que raramente contém glúten, consegue se sobrepor ao gosto pelo
filme. O sabor só se sustenta pelo meio e não mais vice-versa.
Assim, se realiza o
“luto” por “velhos sabores”, já que alguns são perdidos para terra do “nunca
mais”, mas que também oferecem lugar a essas novas experiências. E, também, ao
resgate de sabores que deveriam sempre fazer parte constante do nosso dia a
dia. Como os das frutas da época, deliciosas como só elas. O sabor de um feijão
bem feito, como o da “tia Anastácia”, ou dos doces campeiros que encontramos
com fartura: a ambrosia, o pudim de leite, as compotas e muitos mais que
guardam em si um gostinho de casa da vovó.
Portanto, é
fundamental lembrar mais do que se ganhou do que se perdeu, passar a valorizar
os novos sabores, as novas receitas, outros velhos paladares muitas vezes
esquecidos. Lembrar que, muitas vezes, no momento do interrogatório nos
restaurantes teve alguém que se preocupou, fez questão de pesquisar ou preparar
algo especialmente para você. Que existem pessoas que respeitam a diferença e
que nesse momento você também passará a respeitá-las e valorizá-las mais, não
somente as pessoas, mas a própria diferença. Que estar nessa condição é
difícil, mas também pode ser especial pelas possibilidades originadas. E,
enfim, lembrar que se você optar pela vida apesar de sua condição de
imperfeição ao invés de vivê-la na melancolia pela intolerância com sua própria
falta, perceberá que em sua condição de humano e ser faltante se tornará
realmente belo. Efeito do brilho que você adquire quando vive plenamente todas
as suas possibilidades.
Artigo escrito por:
Dra. Denise Mairesse: Psicanalista e psicóloga - Mestre e Doutora pela UFRGS
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